quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Mono Sapiens

Estou cansado! A hipocrisia social me afasia, veda meus delírios mais íntimos, tritura-os...
Sou um saco de guardar coisas velhas, empalidecido e empoeirado pela falta de ação.
Sou um cão idoso e obeso preso a uma coleira enferrujada.
Sou a sombra do que fui, empurrada pelos raios do tempo.
Raios!
Sou um herói sem nem uma virtude.
Sou Mário de Andrade.
Sou Pessoa.
Sou Dorothy de Oz.
Sou Fausto.
Estou cansado, repito, de desempenhar um papel que não escolhi para uma platéia ridícula. Quosque tandem?
Sou Virgulino Ferreira.
Sou Burroughs.
Sou Gentileza.
Sou Dâmocles de Siracusa.
O motivo de meu ser ou não ser? Que importa, por acaso a Dinamarca é aqui, pergunto?
Não estar, permanecer, continuar, ficar...nunca me ligaram a nada!
O que realmente importa é o que eu não sou. As diferenças, quando sobrepostas, nos dizem muito mais do que as igualdades.
Sejamos, pois, diferentes! Brindemos à desigualdade!
Sejamos o belo e a fera.
O damo e a vagabunda.
O Capuleto e a Montechio.
Desiguais, sim, desiguais!
Às vezes rock, às vezes samba, muitas vezes o silêncio.
Às vezes Annais, às vezes Miller, quase sempre June.
Às vezes conhaque, às vezes cerveja, às vezes vodka...
Às vezes côncavo, às vezes convexo, quase nunca reto.
Sou um espelho esmurrado pela ira de Calibã, um relógio deformado pela memória que persiste ao tempo.
Tempo?...............................................................................
Eis o que dizem sobre o tempo: foda-se todo durante oitenta, noventa por cento de sua vida e terás uma velhice confortável, um spa onde aguardar a vida eterna...
Sue feito um porco, acumule todos os bens possíveis, não divida nunca (nunca!) e terás o Reino dos Céus!
Invejosos!
Querem roubar a sua juventude, suas transgressões, sua arte, suas cópulas e bebedeiras à luz da lua.
Amaldiçôo-os, portanto. Só serão felizes no futuro, mas o futuro já desistiu de chegar faz tempo.
Atrozes, corromperam-se e nos pretendem o mesmo.
Sou Antônio Conselheiro.
Sou Tia Clementina de Jesus.
Sou Cassandra.
Sou Artur Bispo do Rosário.
Proponho um recomeço, uma transformação.
Diferentes, sim, intrusos em um sistema falido, novos educadores de uma sociedade moribunda.
E assim me vou.
Assim, carregando meu pobre organismo, meio de viés, entre os dormentes e desníveis do percurso.
Carrego esse cérebro que não para de doer, esse fígado já castigado, esses pêlos Neanderthalescos que insisto em não tosar, os membros dilacerados como os do poeta e um frágil olhar de menino que acusa a nudez do imperador...
Enfim, já tens parte do que não sou.