quinta-feira, 28 de julho de 2011

A arte dos pés



Sempre fui um profundo admirador do talento.
Seja na literatura, na música, pintura ou em qualquer outra linguagem artística, reverencio aqueles que conseguem enxergar além do senso comum, extrapolando seus limites medianos. Assim também acontece no futebol.
Nunca me baseei na raça de um jogador para admirá-lo, tampouco, às avessas, em frios números de scouts. Para mim, ao final de um jogo, tanto faz se fulano desarmou quinhentas vezes o meio campo adversário ou se cumpriu, com correção, sua função tática, acertando todos os duzentos passes de 30 centímetros que realizou.
Não, meus caros, o que me fascina são os lampejos. Prefiro aquele atleta que passa 89 minutos desaparecido em campo e, no último da partida, acerta um voleio no ângulo e dá a vitória à sua equipe.[1] Adoro a genialidade, a antevisão, o improviso.
Sendo assim, por vezes me vejo incomodado com quem não consegue (ou não quer) enxergar esses tipos de situações. Idolatro os verdadeiros craques, aqueles em que, ainda que os outros treinem e se concentrem o quádruplo do que estes o fazem, ainda não os igualarão.
Estou falando de Ronaldinho.
Obviamente, conheço a passionalidade do futebol, passionalidade esta tolerável. Quem torce contra o Flamengo o quer ver à distância, morto (de sono, após um pagode), com as pernas quebradas (após cair na avenida), assim como raposas não desejam aquelas uvas...
O que me incomoda, repito, não são esses torcedores apaixonados por outro clube que não o encarnado e preto da Gávea, mas sim quem realmente não se encanta com o maravilhoso.
O quarto gol do Flamengo contra o Santos não me sai da cabeça. Aquela cobrança de falta, por baixo da barreira, registrou para a eternidade um dos momentos em que um atleta transcende o meramente técnico. Ronaldinho estava entusiasmado, no sentido filosófico da palavra. Divinizado, tocado pela inspiração.
Para muitos apenas um gol. Para as raposinhas um golpe de sorte.
Para outros uma obra-prima.




[1] 



domingo, 24 de abril de 2011

Recordações...

Estava lembrando da época em que esperávamos pelo Sábado de Aleluia para malhar Judas.
Na véspera, nos reuníamos na pracinha, à noite, e começavamos a escrever os podres dos vizinhos, da família, dos amigos. Enfim, do mundo todo, já que nosso mundo se resumia aos amigos, vizinhos e entornos da pracinha.

Hoje as coisas mudaram, evoluíram. Já não vemos crianças pendurarem Judas e atearem fogo, nem precisamos esperar pelo sábado santo para expormos os podres dos vizinhos, da família e de amigos.
Fazemos isso diariamente  no facebook.

Sofista de Trem no Facebook

segunda-feira, 14 de março de 2011

Sweet Dreams

                                                                                        Para uma boneca em coma...


De repente se agarram, sem o menor motivo aparente. Tocavam-se ao som da gostosa música ambiente. Como o casal não soube precisar o que tocava naquele momento, e dada sua irrelevância, aqui diremos Bizet.


Passaram a noite juntos, agradável noite de outono, onde os corpos buscam abrigo diante à cerração.

Abrigo quase sempre oferecido pelo vinho. Às vezes por Desejo.

Era difícil para os dois entender o que acontecia, então preferiam trocar as incertezas por carícias e sorrisos. Atravessaram aquela fria madrugada de junho juntos, sabe-se lá por que, e estavam deveras satisfeitos por isso.

Brincavam como duas crianças que, aos poucos, vão reconhecendo seus corpos e dando fluidez aos seus toques. Ana Lee não se desgrudava da rosa que tinha ganhado a pouco de seu par, enquanto que ele não se preocupava em ter perdido os manuscritos que carregava, manuscritos estes que resultariam em um poema genial.

Agora pouco importava. Fecharam sua primeira noite sob um confortável edredom em um quarto de um motel não tão confortável assim.

Robert lia para sua querida trechos do Uivo. Ana Lee fingia prestar atenção em cada verso, embora preferisse, naquele momento, estar dormindo. Não que não gostasse da voz de Robert, muito menos dos versos de Ginsberg. Ocorria que eram cinco da manhã e questões fisiológicas a impeliam ao sono. Tivera doces sonhos repousando seus seios nus sobre o dorso de Robert.

De manhã cedo, eles se despediram, entre promessas de voltarem a se ver em breve. Tivera sido bom, mas era hora de cada um retornar a sua vidinha. Robert voltou aos seus livros e, Ana Lee, às caixas da bateria da Brown Bunnies Band.

Duas semanas depois, as promessas de voltarem a estar juntos ainda não haviam se concretizado. Não tinham tido oportunidade de se reencontrar, é verdade, assim como também é verdade que não haviam feito nada para que essas oportunidades surgissem.

Y así los dias pasaban...

Meses depois se esbarraram no Savoy. O bar estava lotado, em virtude das celebrações à Liza, que largaria pela enésima vez a vida de rua, internando-se em uma clínica de recuperação de adictos.

Ana Lee avistou Robert e foi direto até a mesa dele. Conversaram durante dez minutos, trocaram um carinhoso beijo na ponta dos lábios e novamente sorriram. “Cuide-se”, sugeriu Ana Lee, esquecendo-se que há exatos noventa e oito dias tinha implorado a Robert, com os olhos marejados, que a protegesse.

Acontece que, naquela opaca noite de outono, Desejo estava bem mais excitada do que hoje à noite. Sob a neblina baixa que circundava o Savoy, diante dos dois únicos fregueses – além de Robert e Ana Lee – que enfrentaram aquela longínqua madrugada, sob o olhar cansado da taberneira - que, gentilmente, secava a mesa com um pano de prato imundo - e, sobretudo, entorpecida pelos acordes soturnos de um provável Bizet, Desejo sentira suas coxas encharcarem ao aproximar aqueles dois jovens.

“Há um certo mês de junho, em que o trigo precisa ser cortado”, brincava Desejo consigo mesma.

Hoje não. Desejo apenas assiste, entediada, ao reencontro. Fuma um cigarro barato e debocha ao perceber Robert aproximar-se do balcão e pedir um conhaque, ao passo em que Ana Lee vai sendo conduzida por uma amiga até a porta do bar.

Desejo dá um forte trago e sorri. Resolve também deixar o ambiente e se esquecer dos possíveis amantes, pois Desejo é criatura de momento.

 
 
*There is a June when Corn is cut”, por Emily Dickinson.

sábado, 12 de março de 2011

Amor, eu vou ali. Ali na Portela.


Quando liguei do trabalho para a minha casa, e, durante a conversa, minha patroa soltou um “amor, eu vou ali”, juro que não vi maiores problemas. Imaginei que ela fosse comprar cigarros, ir à casa da avó ou – no pior dos meus pesadelos – no máximo visitar uma velha amiga.

Ao chegar em casa, cansado da labuta, sento-me ao sofá para assistir televisão, ciente da missão profissional cumprida e ansioso por esperar o retorno de minha digníssima esposa. Até que o repórter do RJTV me pôs a par da veracidade dos fatos.

Na verdade, o enigmático “Amor eu vou ali” – dessa vez já com a maiúscula inicial que lhe cabe e, por um descuido dos fundadores, sem a vírgula após o vocativo – tratava-se de um bloco de carnaval que, para alegria dos foliões e desgosto dos maridos ciumentos, arrastava uma multidão pelas ruas de um distante subúrbio carioca.

Confesso que ao descobrir tal informação só pensei em duas coisas: primeiro, em morrer; segundo, em matá-la. Não sei se exatamente nessa ordem. O fato é que não matei ninguém, muito menos morri – pelo menos no sentido literal dos termos.

Duas doses de prozac depois, eu pude analisar a situação com calma, e vi que mais uma vez só me restavam duas opções: sofrer em casa ou sambar na Portela...

Ah, minha Portela! Tu que tantas vezes embalastes meus sonhos, tiraste-me o canto para defender teu pavilhão, tiraste-me os tostões para vesti-la de gala...

Ah, minha Portela, tu que me puseste às lágrimas, por alegria e dissabor, ensinaste-me o que é o amor através de teus versos, tu de tantos carnavais...

Tu, minha Majestade, que me faz esperar o ano inteiro, ano após ano, apenas para vê-la cobrir a avenida de azul e narrar para nós mais um enredo vencedor...

Tu que carregas o espírito de uma águia, a deslumbrar o mundo quando fala das coisas do coração;

Tu da porta-estandarte de pés descalços, das rainhas desnudas, que arrancam o sangue das mãos e vísceras de seus ritmistas;
Tu que manifestas coisas que, sei-lá-não-sei, na alma de suas baianas, levando-as a bailar em um gostoso girado...

Tu, ó deusa, dos foliões que brincam em suas alas, das tantas Tias que te temperam com amor, do calor das passistas e elegância de teus compositores.

Ah, minha Portela, obrigado, minha Portela querida, tu salvastes minha vida!

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Barata!

Lembro, vagamente, de um romance da Clarisse que narra a história de uma mulher que, em um ataque de ascese, acabou por comer uma barata. Não tenho maiores lembranças sobre a obra, mas nunca esqueci essa passagem e, vez ou outra, acabava por tentar imaginá-la, achando o cúmulo da sandice. Se aquele foi o momento de provação da personagem, como viria o meu? Dúvida que me importunava toda vez que via um animalzinho daqueles.


Pois bem. Eis que chegou o meu momento.

Estava no Bar da Dona Aninha quando a dona, como de costume, no auge da farra nos grita:

- Acabou a cerveja!

Ato contínuo, olho para a latinha em minha mesa, com alguma esperança de que, messianicamente, pudesse multiplicar o seu líquido interior, como fez nosso mestre com os vinhos lá em Caná.

Mas o fato é que eu não estava em Caná. Estava era no Cachambi e já me daria por satisfeito se não tivesse um espécime do mais repugnante dos animais circundando as extremidades daquela lata – naquele momento o objeto mais valioso do planeta.

Sim, uma barata acabara de perambular pela única latinha de cerveja ainda existente naquele fim de noite!

Rezei, como um bom cristão, para que aquela barata, que para não ser injusto com a mesma não tentarei mesurar o tamanho, não adentrasse o interior do objeto. Acho que fiz direitinho, já que ela passeou um pouquinho, mexeu as anteninhas para um lado e para o outro, e desceu para a mesa até encontrar o chão, balançando fagueiramente suas duzentas perninhas. Naquela hora até me pareceu bonitinha.

Pareceu-me bonitinha até que outro grito, dessa vez mais rude, ecoasse da cozinha:

- Acabou a cerveja. Vou fechar!

Pronto, foi o suficiente para voltar meu asco por aquele animal gosmento já que, naquela altura, o máximo que eu tinha de bebida se concentrava nos locais por onde a criança havia passeado.

Filha da puta, pensei. Ela nem bebe e vem pra cá estragar minha segunda-feira. Onde conseguir outra cerveja? Se eu soubesse teria deixado cair um salame no chão para espantá-la de lá!

Tarde demais. Teria que cometer o sacrifício.

Respirei fundo, prendi o ar e, ainda que de olhos fechados, senti lágrimas se formando e meus pêlos se arrepiarem ao dar a primeira golada. Foi o suficiente para que minha goela se enchesse de bílis, mas não o suficiente para esvaziar a latinha. Parti para a segunda golada, terceira, quarta, ininterruptamente, como as crianças de outrora faziam com Biotônico Fontoura. Até diria que ouvi minha mãe ordenando que eu bebesse tudo de uma vez.

E como acontecia nos tempos do Biotônico, não foi. O resultado foi uma enorme poça de vômito ao pé da mesa. Ao pé, sobre a mesa, sobre mim e, espero eu que, sobre aquela filha da puta de barata, alcoólatra, que me fez lembrar a Clarisse Lispector às três horas da manhã.