domingo, 26 de dezembro de 2010

Jennifer Bailarina: o conto que Dickens não escreveu...


Havia pelo menos uns quatro natais que aquele casal deixara de ser “um casal”. Já haviam entrado naquela fase em que, devido à gradativa diminuição da libido, viviam como um par de irmãos. E como irmãos, que aturam durante anos uma convivência forçada, faziam questão de se odiar.
Foi nessas condições que adentraram a sessão de bonecas da Ria, a maior loja de brinquedos do sertão carioca.

- A Ana Beatriz quer a Jennifer Bailarina.
- Quem é Ana Beatriz? Quem é Jennifer? Quem ainda quer uma Bailarina?

Amélia franziu a sobrancelha. Fuzilou-o com o olhar, como era de costume todas às vezes em que Osvaldo tentava ser engraçadinho. Osvaldo entendeu a mensagem e tentou se emendar:

- É sério, quem é Ana Beatriz?
- A Bia, minha afilhada, filha do meu irmão. Aliás, sua afilhada também.

Amélia esperava por uma discussão maior, mas, para sua surpresa, Osvaldo cedeu de primeira. Estavam no Shopping fazia umas seis horas, escolhendo roupas, livros, CDs, bolas, cartões natalinos, incensos e tudo mais que o Papai Noel pudesse oferecer. O humor e os pés de Osvaldo estavam fracos, debilitados demais para entrar em atrito por causa de uma boneca.

- Tudo bem, querida, procure a Jennifer Bailarina, mas, por favor, prometa que depois dela iremos embora!
- Claro, só falta ela.
- Sim...

“O último presente”, pensou Osvaldo. Como se já não houvesse ouvido isso há uma hora e meia, por quanta da escolha do vestido da sua sogra. Mesmo assim, a fugidia esperança de que aquele fosse o último presente soava como um mantra aos seus ouvidos, até ser interrompido por Amélia.

- Aqui, achei! O armário da Jennifer Bailarina!

Osvaldo se aproximou de um colapso cardíaco ao perceber o quanto custava a tão desejada boneca.

- Isso é um absurdo! Porra, nunca se pagou tanto assim por uma boneca!
- Ai, ela é linda! Olha esse casaquinho, que fofo!
- Claro que é! Por esse preço! Peça desculpa a Bianca, mas, por esse preço, ela terá que esperar...
- É Beatriz...
- Que seja. Olha aqui, cozinha da Jennifer Bailarina pela metade do preço. Leva essa.
- Mas Osvaldo, para que uma criança vai querer a cozinha de uma boneca bailarina? Por isso é mais barato!
- Para que uma criança vai querer um armário, se a graça das bailarinas está na roupa? Por acaso essa boneca sabe dar uma pirueta?

Amélia agora esbravejava.

- Você é horrível Osvaldo! Você é um monstro!
- Não sou monstro, só não vou pagar 350 cruzeiros por uma boneca de 70 cm! Não pagaria isso nem se ela fosse uma criança geneticamente modificada.
- Você sabe que a Bia tem câncer, seu cretino!
- Câncer? Ainda mais essa! Pagar uma fortuna em um brinquedo idiota para uma criança que vai morrer!

Amélia desabou em prantos e correu para pegar um taxi.
Foi o último Natal daquele casal. Ainda antes das festas de fim de ano, desfizeram a união. Hoje faz dez anos desde aquele triste episódio.
Osvaldo vive sozinho, pouco sai; guarda parte do seu dinheiro não sei para o que e vê a vida passar a galopes pela fresta de sua janela.
Ana Beatriz morreu.
Amélia casou-se novamente e é feliz com seu novo marido e sua única filha, a pequena Jennifer.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010


 A moderação do Sofista de Trem Blogspot © se sensibiliza e apoia essa campanha de iniciativa popular.
Atenciosamente, Taah Miranda.

Ps.: Posta, Bastos! 

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Mono Sapiens

Estou cansado! A hipocrisia social me afasia, veda meus delírios mais íntimos, tritura-os...
Sou um saco de guardar coisas velhas, empalidecido e empoeirado pela falta de ação.
Sou um cão idoso e obeso preso a uma coleira enferrujada.
Sou a sombra do que fui, empurrada pelos raios do tempo.
Raios!
Sou um herói sem nem uma virtude.
Sou Mário de Andrade.
Sou Pessoa.
Sou Dorothy de Oz.
Sou Fausto.
Estou cansado, repito, de desempenhar um papel que não escolhi para uma platéia ridícula. Quosque tandem?
Sou Virgulino Ferreira.
Sou Burroughs.
Sou Gentileza.
Sou Dâmocles de Siracusa.
O motivo de meu ser ou não ser? Que importa, por acaso a Dinamarca é aqui, pergunto?
Não estar, permanecer, continuar, ficar...nunca me ligaram a nada!
O que realmente importa é o que eu não sou. As diferenças, quando sobrepostas, nos dizem muito mais do que as igualdades.
Sejamos, pois, diferentes! Brindemos à desigualdade!
Sejamos o belo e a fera.
O damo e a vagabunda.
O Capuleto e a Montechio.
Desiguais, sim, desiguais!
Às vezes rock, às vezes samba, muitas vezes o silêncio.
Às vezes Annais, às vezes Miller, quase sempre June.
Às vezes conhaque, às vezes cerveja, às vezes vodka...
Às vezes côncavo, às vezes convexo, quase nunca reto.
Sou um espelho esmurrado pela ira de Calibã, um relógio deformado pela memória que persiste ao tempo.
Tempo?...............................................................................
Eis o que dizem sobre o tempo: foda-se todo durante oitenta, noventa por cento de sua vida e terás uma velhice confortável, um spa onde aguardar a vida eterna...
Sue feito um porco, acumule todos os bens possíveis, não divida nunca (nunca!) e terás o Reino dos Céus!
Invejosos!
Querem roubar a sua juventude, suas transgressões, sua arte, suas cópulas e bebedeiras à luz da lua.
Amaldiçôo-os, portanto. Só serão felizes no futuro, mas o futuro já desistiu de chegar faz tempo.
Atrozes, corromperam-se e nos pretendem o mesmo.
Sou Antônio Conselheiro.
Sou Tia Clementina de Jesus.
Sou Cassandra.
Sou Artur Bispo do Rosário.
Proponho um recomeço, uma transformação.
Diferentes, sim, intrusos em um sistema falido, novos educadores de uma sociedade moribunda.
E assim me vou.
Assim, carregando meu pobre organismo, meio de viés, entre os dormentes e desníveis do percurso.
Carrego esse cérebro que não para de doer, esse fígado já castigado, esses pêlos Neanderthalescos que insisto em não tosar, os membros dilacerados como os do poeta e um frágil olhar de menino que acusa a nudez do imperador...
Enfim, já tens parte do que não sou.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Luto!




Eis que, por uma ironia do destino, escolho esse trinta e um de agosto de dois mil e dez para cortar o laço inaugural desse blog. Justamente o dia em que o nosso querido Jornal do Brasil bateu as botas.
Mas como nada parece acontecer por acaso, ou como nós precisamos não deixar que o acaso se transforme em nada, me sirvo do falecimento do JB para dar continuidade à mesma luta desse nosso ancestral: a de registrar cenas do cotidiano.
O blog nasce para tentar abrir um espaço para a cultura, seja ela alternativa ou mainstream. Esportes, queiram o nosso glorioso futebol ou o jogo de purrinha. Discussões políticas de boteco, romances eternos e de vinte minutos, Kafka ou a novela das seis.
Um pouco de tudo isso, nada disso tudo, em doses cavalares ou a conta-gotas. Momentos do mais puro pensar, geralmente conseguidos na solidão de um vagão superlotado. Veremos no que isso vai dar...
Então, sejam bem-vindos e não se esqueçam de limpar os pés ao sair.